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Berlim - foto Marcos Porto |
BERLIM – TODAS AS CIDADES, A CIDADE.
por Marco Vasques
“Os tempos ditatoriais estão em voga de novo”. “Estamos retrocedendo
ao passado”. “Fascismo avançando novamente”. Essas são algumas das frases
mais ouvidas por agora, não apenas no Brasil, mas praticamente em todo o
Ocidente. Nessas frases, e em outras do mesmo tom, parece haver uma perda de
liberdade para o obscuro, para a censura e a violência daqueles que odeiam
qualquer diversidade. No entanto, há grupos em que essa provável liberdade
perdida nunca existiu, esse “retorno do fascismo” não faz sentido porque o
fascismo sempre esteve em suas vidas, nunca foi uma ausência. Entre esses
grupos estão as travestis, os homossexuais e transexuais.
Eles-elas sempre existiram em qualquer sociedade, em algumas até são
cultuadas. Mas na nossa sociedade, civilizada, desenvolvida, capitalista,
tecnológica esse grupo é jogado à margem, aos esgotos, às madrugadas, à pista.
Sempre houve pouca luz sobre eles-elas: são violentadas, abandonados,
largadas, mortos. Não as vemos, porque desumanizados: nós, os cegos
violentos; eles-elas as vítimas. Uma minoria consegue escapar do destino,
consegue a inserção na “naturalidade” da vida cotidiana e diurna, a maioria
ainda permanece à mercê de qualquer sorte trágica. A luta é grande, contínua,
prenhe de derrotas, mas também grávida de vitórias.
Berlim: dois corpos à procura, apresentado durante o 5º Festival
Nacional de Teatro Toni Cunha, no Teatro do SESC, pode ser considerada uma
dessas vitórias. Os atores Leandro Cardoso e Mauro Filho usam de suas
experiências, de suas vivências para universalizar o esgotamento de uma
sociedade que insiste em não se olhar no espelho, o esfacelamento de um
mundo que prefere como residência a hipocrisia, a violência em suas mais
variadas cores. Sim, o ponto de partida de Berlim é o espancamento diário
sofrido por pessoas que têm uma orientação sexual que desafia a normatividade,
mas o espetáculo se amplia de tal maneira, que fala e denuncia toda espécie de
achatamento do humano.
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Berlim - foto Marcos Porto |
E o que é Berlim? É a defesa do direito ao corpo para fora da pancadaria,
para fora da possibilidade do soco. A defesa do corpo para dentro da
possibilidade da vivência individual e coletiva. É a não aceitação da força, da
castração, do apagamento e da invisibilidade imposta pela normatividade
embrutecida. É luta para não se perder o direito à corporeidade. É investigação
da vida e suas potencialidades. É a nossa crueldade em fratura exposta. Berlim
fala sobre ter muitas direções, muitos lugares e moradas. A luta se estabelece
pelo hoje, pelo agora e, também, pelo amanhã. Apresenta a dança de nossas
crueldades e danações.
E o que se quer em Berlim? Arte, vida livre, direito à liberdade e o desejo
de um mundo mais equivalente. No entanto, o espetáculo não se ancora no
discurso, na palavra para gritar. Com mergulho aprofundado e consistente na
performatividade, na dança e no teatro é na coreografia dos corpos que se centra
a força expressiva do trabalho. A luta corpórea que toca os embrutecimentos,
mas também o que temos de mais terno.
Nada se apresenta em excesso. A música, a iluminação, a palavra, os
gestos são dosados por uma dramaturgia que leva em consideração o peso de
cada elemento para o todo. Se, como dissemos no início, uma onda
conservadora se avoluma sobre nós é preciso entender que em outras épocas
essa mesma onda nos assolava em silêncio. E mais: exigia que as vozes
contrárias aos seus extermínios não contestasse. A arte como um todo sofre
ataques faz tempo, muito tempo. O teatro, que é uma arte social por excelência,
tem dado respostas à vigilância dominante. Pela sua capacidade de abrir novos
lugares no homem e na cidade, há quem não suporte e resista ao ver as suas
estabilidades, as suas seguranças, os seus privilégios e as suas visões serem
confrontados diretamente. Berlim é uma dessa vozes necessárias ao seu tempo,
ao seu homem e a nossas cidades.
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Berlim - foto Marcos Porto |
FICHA TÉCNICA
Atuação: Leandro Cardoso e Mauro Filho
Direção de cena e técnica: Pietra Garcia
Coreografia e textos: Mauro Filho
Trilha sonora original sugerida: Karma Cia. de Teatro
Ambientação sonora e remix: Hedra Rockenbach
Cenotécnica: Ronaldo Rocha
Figurinos: Leandro Cardoso e Pietra Garcia
Costuras: Lélia Machado de Melo
Fotografia: Denis Natan
Design gráfico: Thiago França
Assessoria de Imprensa: Pietra Garcia
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