domingo, 29 de outubro de 2017

Crítica: Um, Dois, Três: Alice!

Um, Dois, Três: Alice! - foto SeCom Itajaí
UM, DOIS, TRÊS: ALICE! - DO JOGO À LINGUAGEM POÉTICA 
por Marco Vasques

A Téspis Cia de Teatro é uma das mais profícuas e longevas companhias de teatro catarinense. Estão na estrada desde 1993 e conseguiram produzir uma linguagem muito própria. Inicialmente, a Téspis começou trabalhando com adaptações de textos clássicos, o que atendia suas necessidades e investigações cênicas e, em 2009, começou também a trabalhar com dramaturgias próprias. Tanto o movimento de adaptações quanto o de criar sua própria dramaturgia fortaleceram ainda mais a companhia. Seus espetáculos transitam entre o teatro lúdico e poético dedicado ao público infanto-juvenil, até a um teatro mais experimental e existencial. A companhia vê o teatro como uma forma de entender o mundo e entender-se no mundo. Assim, ao longo desses 24 anos, a Téspis mantém-se firme na busca por esse entendimento.

Lewis Carroll, de onde vem a inspiração para o espetáculo Um, Dois, Três: Alice!, viveu entre 1832 e 1898. Nos 66 anos de sua vida ele foi romancista, contista, fabulista, poeta, desenhista, fotógrafo, matemático, professor e reverendo anglicano. As múltiplas funções não o impediram de escrever uma das obras mais icônicas da literatura mundial: Alice no país das maravilhas. Trata-se de um mundo gigantesco de fantasia, cor, nonsense, que se desdobra em muitas leituras possíveis e que devido às inúmeras adaptações, sobretudo para o cinema, ainda vive no imaginário popular e erudito. Foi lida por gente antagônica como Oscar Wilde e Rainha Vitória. Alice no país das maravilhas ganhou o mundo, mas sua obra-irmã, Alice através do espelho, em que a personagem se vê diante de um espelho mágico em uma festa e o atravessa para, novamente, adentrar seu mundo das maravilhas é menos conhecida, lida e difundida.

O espetáculo Um, Dois, Três: Alice!, que a Téspis apresentou no Teatro do Sesc, durante do 5° Festiva Brasileiro de Teatro Toni Cunha, é um mergulho livre nestas duas obras. Uma das primeiras coisas a se ressaltar em Um, Dois, Três: Alice! é o cuidado e o respeito ao universo infantil. Dito assim, pode parecer pouco, mas é muito, sobretudo, porque o teatro feito para crianças, não raro, tende a idiotizar e pasteurizar o riquíssimo universo da criança. Todos fomos crianças - ou temos uma ao nosso redor - e sabemos muito bem que o jogo, o feérico, a capacidade de ver o mundo sob perspectiva não contaminada pela razão e o encontro com as coisas de forma desinteressada são característica que, quando crianças, aguçam nossas sentidos, curiosidades e olhares.

Ao explorar quatro camadas bem definidas: música, imagem, gesto e palavra, o espetáculo leva em consideração justamente esse jogo com os sentidos, com a curiosidade e com a construção de novas miradas, outras moradas. Para cada um desses elementos citados encontramos uma partitura específica, mas que recebe um tratamento dramatúrgico preciso e equilibrado.

A opção por reduzir ao máximo o campo verbal e ampliar os recursos lúdicos por meio de imagens e da expressividade dos atores, faz com que entremos num mundo sugerido, num mundo a ser explorado, num mundo que pode ser inaugurado e apreendido de muitas maneiras. Mais uma decisão acertada do grupo em não se acomodar em contar uma história de forma linear, além de manter evidente consonância com o universo inventivo da Alice.

Apenas no campo musical encontramos alguma dissonância em relação ao todo de Um, Dois, Três: Alice!. Bastante linear e renitente, a trilha sonora do espetáculo se torna, em alguns momentos, pesada em demasia e contrasta com a ludicidade e com o mundo feérico apresentado.

Os atores Denise da Luz, Jônata Gonçalves e Cidval Batista Jr., muito exigidos em suas interpretações, estão soltos em cena para o jogo. Em português, “atuar” se distanciou um pouco de “jogar”, mas em outras línguas, como o inglês o francês, a mesma palavra serve para as duas ações, que tem muito mais semelhanças do que diferenças. A noção de jogo, tão explorada por Jean-Pierre Ryngaert e tida por Denis Guénoun, sobre tudo no livro O teatro é necessário?, como o princípio primeiro da prática teatral está presente no trabalho do início ao fim.

Jogar-atuar são funções culturais que acompanham a humanidade desde sempre. Imaginação, invenção, mentira são extensões possíveis da ação de jogar-atuar. E o teatro, talvez seja a arte que tenha mais proximidade com essas ações, que as usa como matéria-prima, alimento mesmo de sua existência. Um, Dois, Três: Alice! é uma mergulho aberto, límpido nesse mundo amplo do jogo, o que demonstra que a Téspis fez uma leitura aprofundada dos textos de Carroll, que em primeira instância tem como questões centrais: a discussão sobre linguagem, a inauguração de mundos e a reinvenção da linguagem denotativa e saturada, com isso, a Téspis consegue com Um, Dois, Três: Alice! dar ao pequenos, e aos adultos, o direito ao jogo e à linguagem poética.
Um, Dois, Três: Alice! - foto SeCom Itajaí


FICHA TÉCNICA
Dramaturgia e encenação: Max Reinert
Atuação: Denise da Luz, Jônata Gonçalves e Cidval Batista Jr.
Figurinos: Denise da Luz
Vídeos e animações: Leandro de Maman
Operação Técnica: Guilherme Raphael Caldeira
Cenotecnia: Fer-Forge
Assessoria de Imprensa: Jônata Gonçalves
Fotografia: Fernanda de Freitas Pereira

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