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Um, Dois, Três: Alice! - foto SeCom Itajaí |
UM, DOIS, TRÊS: ALICE! - DO JOGO À LINGUAGEM POÉTICA
por Marco Vasques
A Téspis Cia de Teatro é uma das mais profícuas e longevas companhias
de teatro catarinense. Estão na estrada desde 1993 e conseguiram produzir uma
linguagem muito própria. Inicialmente, a Téspis começou trabalhando com
adaptações de textos clássicos, o que atendia suas necessidades e investigações
cênicas e, em 2009, começou também a trabalhar com dramaturgias próprias.
Tanto o movimento de adaptações quanto o de criar sua própria dramaturgia
fortaleceram ainda mais a companhia. Seus espetáculos transitam entre o teatro
lúdico e poético dedicado ao público infanto-juvenil, até a um teatro mais
experimental e existencial. A companhia vê o teatro como uma forma de
entender o mundo e entender-se no mundo. Assim, ao longo desses 24 anos, a
Téspis mantém-se firme na busca por esse entendimento.
Lewis Carroll, de onde vem a inspiração para o espetáculo Um, Dois,
Três: Alice!, viveu entre 1832 e 1898. Nos 66 anos de sua vida ele foi
romancista, contista, fabulista, poeta, desenhista, fotógrafo, matemático,
professor e reverendo anglicano. As múltiplas funções não o impediram de
escrever uma das obras mais icônicas da literatura mundial: Alice no país das
maravilhas. Trata-se de um mundo gigantesco de fantasia, cor, nonsense, que
se desdobra em muitas leituras possíveis e que devido às inúmeras adaptações,
sobretudo para o cinema, ainda vive no imaginário popular e erudito. Foi lida
por gente antagônica como Oscar Wilde e Rainha Vitória. Alice no país das
maravilhas ganhou o mundo, mas sua obra-irmã, Alice através do espelho, em
que a personagem se vê diante de um espelho mágico em uma festa e o
atravessa para, novamente, adentrar seu mundo das maravilhas é menos
conhecida, lida e difundida.
O espetáculo Um, Dois, Três: Alice!, que a Téspis apresentou no Teatro
do Sesc, durante do 5° Festiva Brasileiro de Teatro Toni Cunha, é um mergulho
livre nestas duas obras. Uma das primeiras coisas a se ressaltar em Um, Dois,
Três: Alice! é o cuidado e o respeito ao universo infantil. Dito assim, pode
parecer pouco, mas é muito, sobretudo, porque o teatro feito para crianças, não
raro, tende a idiotizar e pasteurizar o riquíssimo universo da criança. Todos
fomos crianças - ou temos uma ao nosso redor - e sabemos muito bem que o
jogo, o feérico, a capacidade de ver o mundo sob perspectiva não contaminada
pela razão e o encontro com as coisas de forma desinteressada são característica
que, quando crianças, aguçam nossas sentidos, curiosidades e olhares.
Ao explorar quatro camadas bem definidas: música, imagem, gesto e
palavra, o espetáculo leva em consideração justamente esse jogo com os
sentidos, com a curiosidade e com a construção de novas miradas, outras
moradas. Para cada um desses elementos citados encontramos uma partitura
específica, mas que recebe um tratamento dramatúrgico preciso e equilibrado.
A opção por reduzir ao máximo o campo verbal e ampliar os recursos
lúdicos por meio de imagens e da expressividade dos atores, faz com que
entremos num mundo sugerido, num mundo a ser explorado, num mundo que
pode ser inaugurado e apreendido de muitas maneiras. Mais uma decisão
acertada do grupo em não se acomodar em contar uma história de forma linear,
além de manter evidente consonância com o universo inventivo da Alice.
Apenas no campo musical encontramos alguma dissonância em relação
ao todo de Um, Dois, Três: Alice!. Bastante linear e renitente, a trilha sonora do
espetáculo se torna, em alguns momentos, pesada em demasia e contrasta com
a ludicidade e com o mundo feérico apresentado.
Os atores Denise da Luz, Jônata Gonçalves e Cidval Batista Jr., muito
exigidos em suas interpretações, estão soltos em cena para o jogo. Em
português, “atuar” se distanciou um pouco de “jogar”, mas em outras línguas,
como o inglês o francês, a mesma palavra serve para as duas ações, que tem
muito mais semelhanças do que diferenças. A noção de jogo, tão explorada por
Jean-Pierre Ryngaert e tida por Denis Guénoun, sobre tudo no livro O teatro é
necessário?, como o princípio primeiro da prática teatral está presente no
trabalho do início ao fim.
Jogar-atuar são funções culturais que acompanham a humanidade desde
sempre. Imaginação, invenção, mentira são extensões possíveis da ação de
jogar-atuar. E o teatro, talvez seja a arte que tenha mais proximidade com essas
ações, que as usa como matéria-prima, alimento mesmo de sua existência. Um,
Dois, Três: Alice! é uma mergulho aberto, límpido nesse mundo amplo do jogo,
o que demonstra que a Téspis fez uma leitura aprofundada dos textos de Carroll,
que em primeira instância tem como questões centrais: a discussão sobre
linguagem, a inauguração de mundos e a reinvenção da linguagem denotativa e
saturada, com isso, a Téspis consegue com Um, Dois, Três: Alice! dar ao
pequenos, e aos adultos, o direito ao jogo e à linguagem poética.
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Um, Dois, Três: Alice! - foto SeCom Itajaí |
FICHA TÉCNICA
Dramaturgia e encenação: Max Reinert
Atuação: Denise da Luz, Jônata Gonçalves e Cidval Batista Jr.
Figurinos: Denise da Luz
Vídeos e animações: Leandro de Maman
Operação Técnica: Guilherme Raphael Caldeira
Cenotecnia: Fer-Forge
Assessoria de Imprensa: Jônata Gonçalves
Fotografia: Fernanda de Freitas Pereira
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Apto 401 - foto Marcos Porto |
APTO 401 – A RECUSA AO CONVITE
por Marco Vasques
por Marco Vasques
Na sinopse do espetáculo Apto 401, encontramos os seguintes dizeres:
“haverá chapeuzinhos, bolo, bebidas, língua de sogra... Ela assoprará as velas.
Venha, você é a convidada. Venha, você é o convidado.” E é justamente aqui que
cabe a primeira reflexão sobre o espetáculo, pois ele propõe um convite ao
espectador, se propõe como um ato de compartilhamento, no entanto, é
construído de forma a ignorar completamente os participantes. Torna-se uma
recusa ao convite. Convida-nos, mas não nos faz entrar e participar da festa.
Antes de todo o público entrar no teatro, uma integrante do grupo pede
que entrem apenas cinco mulheres, que serão as amigas da atriz Valéria de
Oliveira, adentrem por primeiro. Logo após as amigas, sete homens serão
convidados a entrar, serão os ex-maridos. Somente após esse ritual o público
remanescente é autorizado e convidado a se aconchegar. No entanto, esse ritual
se torna inócuo e não revela nenhuma consequência no decorrer do trabalho, já
que ex-maridos e amigas terão uma participação tão passiva diante do trabalho
quanto o restante do público.
Nas cadeiras: brigadeiros, chapeuzinhos e bebidas. Ao fundo vídeos
evocando Medeia, Lady Macbeth e Ofélia. Valéria de Oliveira nos recebe
dormindo. Sim, ela nos chama para a sua festa, com promessas de
compartilhamento, e nos recebe dormindo. Isso não seria necessariamente um
problema caso se conectasse dramatúrgica e metaforicamente com o seu
suicídio ao final do espetáculo. Mas isso também não acontece. Talvez fosse um
registro irônico, mas a ironia pressupõe contexto e alguma abertura no sentido
da mensagem. Não foi o caso apresentado.
Há a evocação de uma Medeia, que mata os filhos para se vingar de seu
marido Jasão; de Lady Macbeth, que trama com o seu cunhado o assassinato de
seu marido no que poderíamos chamar, metaforicamente, de um golpe de
estado; e de Ofélia, a filha de Apolônio, que é encontrada morta num rio ao
descobrir as inconstâncias do amor e da vida. Porém a evocação dessas
mulheres e seus mundos não atravessam o espetáculo, não dialogam e não se
conectam com a ação em curso em Apto 401.
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Apto 401 - foto Marcos Porto |
Osmar Domingos, que assina a direção, não consegue estabelecer uma
organização na infinidade de elementos que se apresentam, que vão desde as
referências já citadas ao universo da música romantic-pop. Há muitos
desencontros na estética proposta, por exemplo, o trabalho reclama para si um
ar de performatividade, mas estaciona suas partituras no ato representacional e
cenários, por exemplo, no registro realista.
A atriz Valéria de Oliveira, há 13 anos à frente do Grupo Porto
Cênico, em seu primeiro solo da carreira decide por não arriscar as
potencialidades e se apresenta tímida em sua atuação. É preciso que ela
encontre a força expressiva de sua arte, de sua personagem e traga isso a
público. Apto 401 sugere, em alguns momentos, que a discussão em questão,
que a inquietação do grupo é sobre a condição da mulher e os abusos a ela
impostos por uma sociedade machista e dominadora.
Mas isso fica como mera sugestão em duas cenas: uma em que Valéria de
Oliveira dobra meias e cuecas de seus ex-maridos. Único momento em que o
espetáculo propõe algum jogo com o sete homens selecionados no início e na
cena em que ela quase usa, mas de forma incipiente e sem jogo, as suas amigas
como coro ao relatar que em sua vida há a representação de todas as suicidas,
todas as mulheres que atiram suas cabeças ao gás do fogão, todas as mulheres
que cortam seus pulsos, todas as mulheres que morrem de overdoses de
remédios, enfim, nesse momento aparecem pistas por onde o espetáculo
pretende caminhar.
Mas são apenas pistas, frouxas, sem domínio interpretativo, sem uma
direção consciente de seu papel, sem algo que estabeleça relações com as
infindáveis referências trazidas gratuitamente ao palco e, sobretudo, sem o
convite prometido ao público, que sai do espetáculo da mesma maneira que
entrou, ou seja, com impressão de que não foi ao teatro, porque tudo lhe é alheio.
FICHA TÉCNICA
Dramaturgia: Osmar Domingos e Valéria de Oliveira
Direção, cenografia, iluminação: Osmar Domingos
Atuação, figurinos, adereços: Valéria de Oliveira
Canção original: Aline Barth
Comunicação: Karoline Gonçalves
Fotografia: Ana Beatriz de Oliveira
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Apto 401 - foto Marcos Porto |
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Berlim - foto Marcos Porto |
BERLIM – TODAS AS CIDADES, A CIDADE.
por Marco Vasques
“Os tempos ditatoriais estão em voga de novo”. “Estamos retrocedendo
ao passado”. “Fascismo avançando novamente”. Essas são algumas das frases
mais ouvidas por agora, não apenas no Brasil, mas praticamente em todo o
Ocidente. Nessas frases, e em outras do mesmo tom, parece haver uma perda de
liberdade para o obscuro, para a censura e a violência daqueles que odeiam
qualquer diversidade. No entanto, há grupos em que essa provável liberdade
perdida nunca existiu, esse “retorno do fascismo” não faz sentido porque o
fascismo sempre esteve em suas vidas, nunca foi uma ausência. Entre esses
grupos estão as travestis, os homossexuais e transexuais.
Eles-elas sempre existiram em qualquer sociedade, em algumas até são
cultuadas. Mas na nossa sociedade, civilizada, desenvolvida, capitalista,
tecnológica esse grupo é jogado à margem, aos esgotos, às madrugadas, à pista.
Sempre houve pouca luz sobre eles-elas: são violentadas, abandonados,
largadas, mortos. Não as vemos, porque desumanizados: nós, os cegos
violentos; eles-elas as vítimas. Uma minoria consegue escapar do destino,
consegue a inserção na “naturalidade” da vida cotidiana e diurna, a maioria
ainda permanece à mercê de qualquer sorte trágica. A luta é grande, contínua,
prenhe de derrotas, mas também grávida de vitórias.
Berlim: dois corpos à procura, apresentado durante o 5º Festival
Nacional de Teatro Toni Cunha, no Teatro do SESC, pode ser considerada uma
dessas vitórias. Os atores Leandro Cardoso e Mauro Filho usam de suas
experiências, de suas vivências para universalizar o esgotamento de uma
sociedade que insiste em não se olhar no espelho, o esfacelamento de um
mundo que prefere como residência a hipocrisia, a violência em suas mais
variadas cores. Sim, o ponto de partida de Berlim é o espancamento diário
sofrido por pessoas que têm uma orientação sexual que desafia a normatividade,
mas o espetáculo se amplia de tal maneira, que fala e denuncia toda espécie de
achatamento do humano.
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Berlim - foto Marcos Porto |
E o que é Berlim? É a defesa do direito ao corpo para fora da pancadaria,
para fora da possibilidade do soco. A defesa do corpo para dentro da
possibilidade da vivência individual e coletiva. É a não aceitação da força, da
castração, do apagamento e da invisibilidade imposta pela normatividade
embrutecida. É luta para não se perder o direito à corporeidade. É investigação
da vida e suas potencialidades. É a nossa crueldade em fratura exposta. Berlim
fala sobre ter muitas direções, muitos lugares e moradas. A luta se estabelece
pelo hoje, pelo agora e, também, pelo amanhã. Apresenta a dança de nossas
crueldades e danações.
E o que se quer em Berlim? Arte, vida livre, direito à liberdade e o desejo
de um mundo mais equivalente. No entanto, o espetáculo não se ancora no
discurso, na palavra para gritar. Com mergulho aprofundado e consistente na
performatividade, na dança e no teatro é na coreografia dos corpos que se centra
a força expressiva do trabalho. A luta corpórea que toca os embrutecimentos,
mas também o que temos de mais terno.
Nada se apresenta em excesso. A música, a iluminação, a palavra, os
gestos são dosados por uma dramaturgia que leva em consideração o peso de
cada elemento para o todo. Se, como dissemos no início, uma onda
conservadora se avoluma sobre nós é preciso entender que em outras épocas
essa mesma onda nos assolava em silêncio. E mais: exigia que as vozes
contrárias aos seus extermínios não contestasse. A arte como um todo sofre
ataques faz tempo, muito tempo. O teatro, que é uma arte social por excelência,
tem dado respostas à vigilância dominante. Pela sua capacidade de abrir novos
lugares no homem e na cidade, há quem não suporte e resista ao ver as suas
estabilidades, as suas seguranças, os seus privilégios e as suas visões serem
confrontados diretamente. Berlim é uma dessa vozes necessárias ao seu tempo,
ao seu homem e a nossas cidades.
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Berlim - foto Marcos Porto |
FICHA TÉCNICA
Atuação: Leandro Cardoso e Mauro Filho
Direção de cena e técnica: Pietra Garcia
Coreografia e textos: Mauro Filho
Trilha sonora original sugerida: Karma Cia. de Teatro
Ambientação sonora e remix: Hedra Rockenbach
Cenotécnica: Ronaldo Rocha
Figurinos: Leandro Cardoso e Pietra Garcia
Costuras: Lélia Machado de Melo
Fotografia: Denis Natan
Design gráfico: Thiago França
Assessoria de Imprensa: Pietra Garcia
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Estapafúrdio - foto: Marcos Porto |
ESTAPAFÚRDIO – PENSAR O RISO É PENSAR O TEATRO
por Marco Vasques
“A vida humana é sinistra e sempre desprovida de sentido; basta um palhaço para lhe ser fatal”. Essa é uma das frases certeiras de Nietzsche, em Assim falou Zaratrusta. Palhaços, bufões, clowns e bobos têm longa história. A forma como os conhecemos hoje, com suas roupas exageradas, suas máscaras, seus narizes vermelhos, descendem das personagens demoníacas do teatro medieval, no entanto, já transitavam em tempos gregos e romanos – apenas para ficarmos em duas culturas mais conhecidas do ocidente.
Os palhaços, além de serem fatais para o trágico da vida sem sentido, sempre foram vozes à margem, nas fronteiras do deboche, da loucura, da idiotia, talvez por isso quanto mais populares, mais desprezados por uma certa elite intelectual fazedora de cânones. Propp, o pensador russo, é assertivo ao dizer que “o desprezo pelos bufões, pelos atores do teatro de feira, pelos clowns e os palhaços e, em geral, por qualquer tipo de alegria desenfreada é o desprezo pelas fontes e pelas formas populares de riso.”
Apesar disso, a palhaçaria sobrevive. Articula-se abaixo e afora dos padrões, estabelece-se cada vez mais como uma das grandes vertentes do teatro: sobretudo porque livre, direta, prenhe daquela vontade de fazer rir pelo ridículo, pela exposição contumaz do não sentido da vida. A palhaçaria como signo da infância, do divertimento, da leveza mas ao mesmo tempo como espaço para a agudeza, a crueza, a força derruidora do humor: características sumamente humanas.
Talvez nenhuma outra arte tenha conseguido mesclar tanto os dois sentidos de humor. Todos os grandes clowns, bufões e afins carregam, por trás da alegria, do riso, do gesto engraçado, àquele outro significado de humor, a saber: a melancolia, ou seja, são fatais para a vida desprovida de sentido. Henri Begson, outro filósofo que se dedicou ao riso, por saber que ele possui uma dinâmica, por entender que ele é passível de domínio, afirma que “O riso é a mecânica aplicada no ser vivo”. Então, do domínio artístico da mecânica do riso ao desprezo e ao preconceito característicos, e ainda vigentes, contra qualquer manifestação artística “não séria”, “não aprofundada”, existe um lugar em que não podemos cair, em que não devemos mergulhar.
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Estapafúrdio - foto: Marcos Porto |
Esse lugar é o de não se fazer um equilíbrio entre a linguagem artística que a palhaçaria exige, de não se preocupar com a construção do riso e suas amplitudes como arte. Se faz necessário fugir desse lugar, porque ele pode reafirmar o discurso comum e aterrador de que qualquer um pode ser palhaço e de que se trata, efetivamente, de arte menor e passível de ser exercida de forma natural, sem pesquisa artística e experimentação de suas linguagens.
O espetáculo Estapafúrdio, do palhaço Pacacoenco, não consegue fazer essa travessia necessária e se equilibrar em suas proposições. Não que falte esforço a Charles Augusto. O artista chega a insinuar uma ternura-terror ao início da apresentação, quando vai apresentando pessoas desconhecidas a pessoas desconhecidas na rua, no entanto, na medida em que a atuação avança as limitações do trabalho vão se agigantando e o jogo proposto se mostra ineficaz.
Estapafúrdio abandona o pensamento sobre o riso porque não se pensa como jogo, como teatro. O público se nega a participar do evento, se mostra incrédulo. Para que um palhaço atinja sua força primeira se faz necessário que ele conquiste seu público, que faça seu público acreditar que está diante de um ser que tudo pode fazer, que com tudo pode brincar.
Uma vez dominado seu campo, o palhaço pode mergulhar num copo de
água, pode fazer uma cadeira parecer um prédio de muitos andares, pode
também, fazer o público mergulhar com ele num simples copo de água e sair
banhado de espanto, de ternura, de tristeza e de beleza.
Isso não ocorre com Estapafúrdio. O espetáculo tem a direção de Marcio
Libar, autor do livro “Nobre Arte do Palhaço”. O que resulta em
questionamentos ainda maiores: como Marcio Libar não problematizou as
fragilidades existentes no trabalho? Qual foi a interferência real que ele fez na
composição das cenas e roteiro de Estapafúrdio? Como o desprezo pela arte da
palhaçaria pode ocorrer por quem a vive e a ama? Charles Augusto precisa
encontrar sua arte e seu palhaço para, depois, nos apresentar sua arte. Sem
mergulhar nela, o mergulho e o sonho propostos pelo espetáculo se tornam
ineficazes.
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Estapafúrdio - foto: Marcos Porto |
FICHA TÉCNICA
Atuação e criação: Charles Augusto
Direção: Marcio Libar
Direção de arte: Silvana Rocha
Costura: Vera Lúcia Farias e Maria Isolete
Sonoplastia: Charles Augusto
Arte gráfica: Euclydes da Cunha Neto
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DOIS AMORES E UM BICHO – A ALEGORIA DA CRUELDADE
por Marco Vasques
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Dois Amores e Um Bicho - foto Marcos Porto |
por Marco Vasques
Fundada em 1999, a Cia. Experimentus é uma das companhias mais longevas de Itajaí. Já montou 15 espetáculos para crianças, jovens e adultos. Desde o começo vem participado de inúmeros festivais e mostras nacionais. Sua última montagem é o texto Dois Amores e Um Bicho, do venezuelano Gustavo Ott. Na verdade, trata-se de uma segunda montagem que o grupo empreende da mesma obra com outro recorte estético.
Ott, um dos mais proeminentes dramaturgos latino americanos, atua também como romancista, diretor teatral e jornalista. Desde a década de 1980 até agora, vem escrevendo e dirigindo inúmeros espetáculos, colecionando prêmios e sendo montado em diversos países. Com 54 anos, profícuo e incansável, Ott já tem mais de trinta obras que refletem sob diversos ângulos aspectos da vida cotidiana, sobretudo as violências, as censuras, as hipocrisias que praticamos e das quais somos vítimas também.
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Dois Amores e Um Bicho - foto Marcos Porto |
Com Dois Amores e Um Bicho não é diferente. A peça estreou em 2004, em Caracas, sob sua direção. Nesses últimos anos, a dramaturgia já foi encenado em Cuba, França e no Brasil. O texto trata dos fascismos cotidianos que nos atingem e que estão cada vez mais fortalecidos, mas, ao mesmo tempo, revela as profundas contradições e delicadezas de cada personagem.
Um orangotango preso num zoológico acusado de praticar sexo com outro orangotango. Um cachorro é assassinado por seu dono por ser considerado homossexual. Uma bomba que explode numa escola matando centenas de pessoas durante uma festa. Os animais de um zoológico são dizimados, aos poucos, misteriosamente. Uma imprensa faminta, uma polícia dúbia em suas ações e um conflito familiar velado que aos poucos vai revelando ao público suas instâncias de desejos e vontades não assumidas. O mundo alegórico criado por obras como A metamorfose, O rinoceronte, A revolução dos Bichos, ganha mais um espaço com esse Dois amores e um bicho, pois são muitas as questões contemporâneas a serem exploradas.
A montagem da Cia. Experimentus apresentada no espaço cultural Itajaí Criativa - residência artística, durante o 5º Festival Brasileiro de Teatro Toni Cunha, não se furta em tangenciar as sutilezas e as questões mais evidenciadas do texto. O primeiro mérito da montagem se encontra na direção, de Daniel Olivetto, que soube nuançar a ironia amarga proposta por Ott, manter a tensão exigida ao núcleo familiar e equilibrar os recursos cênicos escolhidos. Se a proposta do dramaturgo venezuelano é uma crítica ácida e aberta ao mundo contemporâneo ela também reserva muitas sutilezas por alegoria e o grupo joga com isso em muitos momentos, sejam com os vídeos selecionados para abrir e fechar cada quadro, seja na atmosfera propiciada pela iluminação, trilha sonora e atuação.
Em uma das cenas em que Pablo interpretado pelo ator Marcelo de Souza, e Karen, vivida pela atriz Sandra Konll, travam um diálogo no zoológico há a presença de uma criança em seu carrinho de bebê. A criança, em verdade, é simbolizada por uma zebra, o que dá a chave sutil de afirmar, de forma metafórica e alegórica, que sabemos de quais bichos estamos tratando, do bicho humano e suas animalidades e cruezas.
Sandra Knoll consegue fugir à estrutura linear de interpretação o que não ocorre com Andréa Rosa e Marcelo de Souza. A opção por uma linearidade interpretativa é nitidamente uma proposta do grupo, não necessariamente um problema, no entanto, os tensionamentos e as surpresas do trabalho se esvaziam um pouco, pois o público é jogado, de início, numa vibração e seguirá nela durante todo o espetáculo, o que se por um lado dialoga com os tempos esticados, duros, acirrados em que vivemos, causa, por outro lado, uma impressão de que os atores não dispõem de recursos para algumas variações rítmicas exigidas no trabalho.
Dois Amores e Um Bicho se apresenta como um caleidoscópio de sugestão, não incorre em apelos fáceis, em estampar a violência de maneira simples e vulgar. Oferece ao espectador a possibilidade de adentrar em vários universos, várias camadas e se constitui, inteligentemente, em uma obra aberta sem incorrer no perigo de cair na violência caricata e na vulgarização das relações.
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Dois Amores e Um Bicho - foto Marcos Porto |
FICHA TÉCNICA
Texto: Gustavo Ott
Tradução: Marialda Gonçalvez Pereira
Elenco: Andréa Rosa, Marcelo de Souza e Sandra Knoll
Direção: Daniel Olivetto
Edição de Som e Vídeo: Marcelo de Souza
Cenário, desenho de luz, trilha sonora e projeto gráfico: Daniel Olivetto
Figurinos: Cia. Experimentus
Operação técnica: Daniel Olivetto e Natália Pereira
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Pô!EMA – QUANDO A "OUTRA VOZ" NÃO É OUVIDA
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EVOCANDO OS MORTOS - POÉTICA DA EXPERIÊNCIA: RITUAL E RESISTÊNCIA
por Marco Vasques
“Utopia, paixão e resistência”, essa é a fundamentação teórica, ética e poética da Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui Traveiz, uma das mais longevas e sólidas companhias teatrais do Brasil. Nascida em março de 1978, a companhia permaneceu coerente com a revolução poética do teatro. Quarenta anos depois, com mais de 30 espetáculos no repertório, a Tribo de Atuadores permanece atenta e atuante, apostando sempre no teatro de rua como espaço capaz de encampar o triunvirato utopia, paixão e resistência. A cada espetáculo, a companhia se aprofunda na pesquisa estética e propõe novos caminhos, outros atalhos, perspectivas outras para que a obra seja capaz de chegar ao público, pegá-lo por dentro e transformá-lo de alguma maneira e em alguma instância.
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Pô!Ema - criação poética para crianças - foto Marcos Porto |
por Marco Vasques
Quando um espetáculo resulta no seu contrário, isto é, quando ele contradiz sua proposição política, ética e estética, pode-se assegurar que faltou pesquisa, laboratório, experimentação, investigação e, também, uma certa ausência de responsabilidade dos encenadores. Outra hipótese possível nesses casos é a de que o projeto de encenação se impõe maior que as possibilidades do grupo. Uma terceira via pode sugerir que o coletivo não tem clareza de seus propósitos, mas esse caso não se aplica aqui. Em ambos os casos iniciais, não há soluções fáceis. O negócio é enfrentar o problema, antes que ele possa ruir as estruturas pensadas e projetadas.
Se construir um espetáculo a partir de poemas se mostra um desafio, imaginemos a complexidade de um espetáculo que se propõe a criar poemas com uma plateia em fase de alfabetização e, a partir daí, erguer a sua partitura dramatúrgica e de atuação.
PÔ!EMA, apresentado no teatro do SESC durante o 5º Festival Nacional de Teatro Toni Cunha, tem essa pretensão. Ocorre que a poesia é uma arte que não se faz com ideias, conforme sugestão do poeta francês Mallarmé. Poesia, para ele, se faz com palavras. Entrar no reino silente das palavras e de lá erguer ressonâncias, espinhos, solaridades é uma das tarefas do poeta.
Para Octavio Paz, em seu livro O Arco e a Lira, a poesia parece ser um mundo abarcador de tudo, um mundo salvador capaz de dar conta dos paradoxos, dos contrários, das efemérides e perenidades da vida, um mundo ilusoriamente completo, pois para cada definição de Paz reverberam infinitas definições não citadas, escondidas na impossibilidade de trazê-las à luz. Portanto, se o poético é aquilo que tem qualidade, atmosfera, encantos da poesia, ele também se instala numa infinitude de lugares. Qualquer tentativa de encaixotá-lo numa definição é resumir a sua amplitude. Mas é sempre preciso fazer um corte, escolher um caminho, perpetrar uma violência para estabelecer um fio condutor do que seja uma definição do poético.
O poético pode ser conceituado também como uma inquietação, uma fricção que provoca o sujeito a ponto de retirá-lo do eixo, da normalidade, algo que suspenda a sua estagnação, que o turbilhone e lhe diga: isso é estar vivo. Esta fricção, pode vir do belo artístico, assumindo aqui a concepção de Hegel em que o belo artístico é superior ao belo natural, pois trata-se de um produto do espírito humano, superior à natureza.
Assim, um vulcão, por exemplo, é um espetáculo de beleza incomparável, mas não é fruto do espírito, ou da criatividade humana, é um acontecimento que segue regras próprias da natureza. Já pintar, fotografar, poetizar, filmar esse vulcão, e principalmente, como ele afeta a atividade humana, traz o belo natural para dentro do corpo, o transforma em arte. O artista estabelece um olhar, um corte, um ângulo e, após a produção, repassa esse olhar ao espectador, leitor, consumidor da obra, que também o recorta, o angula, o expande em seu próprio corpo e se agiganta, ou se apequena diante do poético e de como ele lhe invade física e espiritualmente.
Por outro lado, o poético pode vir também da outra face do belo: o feio, o grotesco, a violência que pulsa a animalidade nem sempre tão perdida do homem. Nem sempre o sublime existe na acepção ligada ao encantamento, à leveza (vide Genet, Artaud, Koltès, Plínio Marcos). Ainda mais no mundo atual, onde muitos dos conceitos clássicos de beleza se perderam há muitas décadas, onde não há mais sentido, pois o sentido do mundo passou a ser o seu contínuo não-sentido. Um mundo em que os corpos são chagas abertas, em que há uma uniformização de “corpos de miséria, corpos famintos, corpos batidos, corpos prostituídos, corpos mutilados, corpos infectados, corpos inchados, corpos demasiado alimentados, demasiado body-builded, demasiado excitantes, demasiado orgásticos”, conforme sentencia o filósofo Jean-Luc Nancy. Essas são algumas das questões que aparecem quando adentramos no mundo da poesia, do poema, do poético.
PÔ!EMA é estruturado numa dinâmica em que a atriz Sandra Coelho conduz o público de uma escrivaninha onde escreve seus poemas que são comidos por uma Ema, a atriz provoca o público infantil a ajudá-la a escrever para sustentar uma Ema e sua prole. O trabalho sugere que a personagem de Sandra Coelho seja uma escritora em crise no seu processo de criação, já que seus poemas são devorados pela Ema, que pode nesse caso simbolizar o momento de esvaziamento criativo pelo qual todo artista um dia passará. Mas a Ema poderia ganhar, também, outros contornos e funções que dinamizasse o diálogo que a atriz propõe com os pequenos.
A questão a se colocar é que a noção de poesia apresentada por Sandra Coelho consiste numa linguagem que foge ao universo poético, que estrangula a possibilidade de poesia, porque se apresenta numa linguagem referencial, numa linguagem denotativa que se empobrece mais e mais porque não há nenhum chamamento do público para o universo lúdico, para brincar efetivamente com as palavras, para encontrar outros modos de dizer o mundo. O que impera em PÔ!EMA é a noção clichê de poesia bonitinha, de palavras que combinam pela rima atrelada a uma função da linguagem explicativa. O trabalho se propõe aberto, mas se apresenta fechado, encaixotado, não permitindo ao público infantil mais que uma relação passiva diante do acontecimento à sua frente.
Os corpos teatrais são muitos e suas investigações e potencialidades de linguagens também, mas é preciso mergulhar no reino da teatralidade antes de fazer o mergulho no espectador. É preciso investigar, experimentar, buscar uma voz - a “outra voz”, para usar uma expressão de Octávio Paz - e um norte, ainda que não totalmente explorado e delimitado, porque um artista de palco não deve negligenciar seu labor, sua luta com as palavras e com os corpos antes de provocar o encontro com seu público.
FICHA TÉCNICA
Criação original: Sandra Coelho e Leandro Maman
Atuação: Sandra Coelho
Design gráfico e de projeção: Leandro Maman
Trilha sonora: “As Meias de Ema” por Cirandela Teatro, letra de Eloí Bocheco
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Pô!Ema - criação poética para crianças - foto Marcos Porto |
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Evocando os Mortos - foto Marcos Porto |
por Marco Vasques
“Utopia, paixão e resistência”, essa é a fundamentação teórica, ética e poética da Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui Traveiz, uma das mais longevas e sólidas companhias teatrais do Brasil. Nascida em março de 1978, a companhia permaneceu coerente com a revolução poética do teatro. Quarenta anos depois, com mais de 30 espetáculos no repertório, a Tribo de Atuadores permanece atenta e atuante, apostando sempre no teatro de rua como espaço capaz de encampar o triunvirato utopia, paixão e resistência. A cada espetáculo, a companhia se aprofunda na pesquisa estética e propõe novos caminhos, outros atalhos, perspectivas outras para que a obra seja capaz de chegar ao público, pegá-lo por dentro e transformá-lo de alguma maneira e em alguma instância.
O 5º Festival Nacional de Teatro Toni Cunha fez sua abertura com o espetáculo Caliban – a Tempestade de Augusto Boal. Trabalho de rua que evoca os tempos sombrios aos quais precisamos resistir e que remete aos nascimentos e morredouros da América Latina. Ontem, o Teatro do Sesc recebeu Evocando os Mortos – Poéticas da Experiência. Conceituado de desmontagem pela Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui Traveiz, o acontecimento teatral revela o processo criativo da atriz Tânia Farias,com base em pesquisas para os espetáculos Kassandra In Process; Viúvas: Performance Sobre a Ausência; Hamlet Máquina e A Missão – Lembrança de Uma Revolução. A atriz também revela algo sobre Medeia Vozes.
O monólogo tem como pressuposto um diálogo íntimo entre a atuadora e o público. Tânia Farias faz uma espécie de diário compartilhado e começa a revelar a sua trajetória como atriz, as suas referências teóricas, a sua condição de mulher em um mundo perfidamente machista, o modo de operação da Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui Traveiz, os conceitos éticos do coletivo, as dificuldades pelas quais o grupo passou para conquistar seu território. Evocando os Mortos – Poéticas da Experiência trata da nossa existência coletiva e do acontecimento da arte na vida. É norteado pela partilha do sensível e do conhecimento. Insinua-se como um ritual que tenta unir o postulado
estético e político de Bertolt Brecht com a busca medular de Artaud.
À medida que a conversa acontece, somos chamados a fazer parte do ritual proposto por Tânia Farias. Somos acariciados por seus gestos, sua voz e suas histórias, que deixam de ser a história de uma atriz e da sua busca poética para se tornar a nossa história, a nossa luta. O que temos aqui é o atual, o contemporâneo explicando a ideia de acontecimento. Não apenas como fato singular, sentido único ou novo, mas como força e pensamento da diferença, como exposição do horizonte que mostra as impurezas e purezas do sentir, que mostra as experiências insólitas, que perturbam porque ambivalentes e excessivas, mas que também revolucionam porque estão calcadas no
poético.
Dessa forma, o acontecimento reverbera, amplia-se, coagula-se em teatralidade, muito por causa da experiência de Tânia Farias. O conceito de acontecimento também pode ser pensado,segundo estudos de Erika Fischer-Lichte e David Davies, como defesa de uma arte que é uma ação em curso. Uma arte que abdique das categorias tradicionais de análise, a saber: a hermenêutica, a semiótica e a crítica estética vinculada à poiesis. Ao crítico, no modelo sugerido, cabe a experiência da ação em curso e o abandono das certezas teóricas. Só é possível olhar, ler e viver Evocando os Mortos considerando esse abandono teórico, porque a dimensão humana viva abdica de teoria. A dimensão humana é toda sensória, corpo que é todo tato, alma que é toda poesia vivida, muitas vezes poesia arduamente saqueada, rompida, usurpada. Por isso é preciso evocar, trazer e buscar nossos mortos e estampá-los cruelmente na vida. Evocando os Mortos – Poéticas da Experiência se faz ritual, resistência, manifesto criativo e destino de liberdade. Tânia Farias é acontecimento que nos acontece.
Para além de revelar os modos com os quais compõem suas atuações e os conceitos que atravessam a sua pesquisa e da Trupe, Tânia Farias conversa com o espectador, acaricia o público e convoca-nos a partilhar, a comungar o teatro, a vida, as nossas alegrias e tristezas. Não seria exagero dizer que ela emancipa o espectador,
tratando-o como parte sensível da sua experiência, tal qual propõe Jacques Rancière nos livros O Espectador Emancipado e Partilha do Sensível.
Ficha Técnica:
Criação: Tânia Farias, com base em quatro personagens de espetáculos da Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui Traveiz
Concepção e Atuação: Tânia Farias
Produção: Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui Traveiz
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PRIMEIRO MILAGRE – A IRONIA PROMETIDA
por Marco Vasques
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foto: Marcos Porto |
PRIMEIRO MILAGRE – A IRONIA PROMETIDA
por Marco Vasques
Toda a obra de Dario Fo, iniciada no começo dos anos de 1950, está calcada na sátira política e social. Ele é uma das vozes mais pertinentes contra os sistemas opressores e corruptos que se apossam dos governos e lá ficam a custo de mentiras, negociatas e jogadas escusas. Ficam a qualquer custo, ainda que o preço seja a marginalização do humano, a instauração do inumano. Por isso, Dario Fo se tornou um impertinente, uma pedra no sapato das agigantadas estruturas de aprisionamento.
Trata-se de uma dessas vozes artísticas que se faz cada vez mais necessária de se ouvir e ver. Mesmo canônico, laureado com o Prêmio Nobel de Literatura em 1997, Dario Fo nunca se encaixou nos protótipos e estereótipos dos escritores reclusos ou distanciados. Engajar-se, comprometer-se, dizer e dizer-se o tempo todo era a sua grande característica. Teatral por essência, ele sempre fez esboços de suas tramas na pintura, depois apresentava suas ideias no palco e só após esse processo é que escrevia. Entendia a escritura como uma consequência da vida, da existência, não o contrário.
Talvez por isso, seu teatro tenha uma carga tão forte de improviso, coloquialidade, inventividade que fazem do humor de Dario Fo uma linguagem muito específica. Dario Fo cria muito sobre os mitos, as lendas, as histórias populares e religiosas. As fundações do que somos é o espelho de suas indagações sobre o que nos tornamos. Esse é o caso de Primeiro Milagre, texto-roteiro no qual ele faz uma releitura do nascimento de Jesus Cristo e do seu primeiro milagre, a partir de um evangelho apócrifo de Mateus.
Foi Primeiro Milagre, montagem do Grupo Risco de Teatro, que fez a abertura da Mostra Local, no Festival Nacional de Teatro Toni Cunha. A proposta do grupo, para além da fábula, é a de evidenciar as questões urgentes e presentes nas sombras de nossos dias. E quais seriam essas questões? No final da sinopse, o Grupo responde: “Primeiro Milagre vai além de elucidar uma história milenar, ele trata de temas que se mantêm fortes até os dias de hoje: racismo, miscigenação, ego e a falta de habilidade das pessoas em serem humanas.” Ressalte-se que ficamos na dúvida quanto à miscigenação nessa lista. A miscigenação seria um problema como os outros elementos? Não estaria o grupo querendo, no caso, se referir à xenofobia? De qualquer forma, não nos parece que a miscigenação tenha sido um dos temas abordados por Dario Fo nessa obra.
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foto: Marcos Porto |
Formado por um coletivo jovem, a inquietação move os experimentos do Grupo Risco. No entanto, em Primeiro Milagre, encontramos uma emulação com o texto. Uma quase divergência com a estética de Dario Fo, que nunca poupou a sociedade de suas cruezas, revelando-as da forma mais despudorada, porque é na bufonaria, na destruição das estruturas opressoras e no questionamento das instituições mantenedoras da voz dominante que se assenta o seu verbo e a sua ação. Primeiro Milagre é uma dura crítica à construção do imaginário cristão e, também, de suas fabulações. É uma ficção que tem por objetivo intervir na realidade de uma ficção que se solidifica e se perpetua mundo afora. Dario Fo é um italiano que sabe muito bem das perversões santificadas pelo catolicismo raso e defensor de uma sociedade segregada, opressora e machista. Por isso, não há piedade e muito menos lirismo em sua proposição.
A montagem do Grupo Risco apresenta um caminho intervalar, um caminho que se desencontra, em muita medida, com a proposta de Dario Fo. E por quê? Em primeiro lugar, o riso que se apresenta não se aproxima da acidez e da crítica que Fo imprime em seu texto, a opção foi por organizar o trabalho a partir de um riso caricato, um riso fácil mesmo, que não nos deixa aquele sabor de desespero e de destruição que é comum ao bufão. Isso fica evidente na reação do riso expresso pelo público, um riso dilatado e suprimido de agruras. O grotesco sequer se apresenta. Há um riso afrouxado, calcado num realismo exagerado, algo típico da comédia comum, o que acarreta um esvaziamento da força do texto e, por consequência, da atuação de Rodolfo Lemos.
Embora ator de muitos recursos e com possibilidades de adentrar efetivamente nas cruezas fraturadas de Fo, a direção do espetáculo se mostra titubeante com as intenções do texto. Existe um lirismo no espetáculo distanciado da sua força expressiva originária. Não há espaço para compaixão e lirismo no que a dramaturgia traz. Aí surgem perguntas: no que exatamente o espetáculo toca? O que está a criticar? Qual o seu propósito? O trabalho não se arrisca na seara de destruição inerente a um bufão, que nada respeita. O lirismo, entoado pela música que inicia e termina a partitura cênica de Primeiro Milagre entra em conflito com a proposição da obra.
Somam-se a isso momentos delicados, e são delicados justamente porque o bufão não entra em cena. Tais como a ideia de um José, com sotaque nordestino, e com uma feição que afirma o preconceito alcunhado no senso comum, isto é, da preguiça e indolência daquela gente. É preciso que a ironia prometida aconteça, para que a cena em que o negro é afrontado e humilhado não deixe dúvidas ao espectador que se trata de uma crítica mordaz ao preconceito, não uma possível afirmação dele. Com isso não queremos dizer que a intenção de Grupo Risco é a de afirmar preconceitos, mas que a promessa de combatê-los ou não se efetiva plenamente ou deixa margem para o pensamento dúbio sobre questões tão afloradas na atualidade (vide os recentes debates em torno da obra cinematográfica Vazante, de Daniela Thomas).
Sim, Primeiro Milagre atravessa o preconceito e o bullying que Jesus sofre, mas esse não é o único ponto-âncora da obra. Há uma discussão, que a montagem escolheu por não acentuar, que é a sátira explícita de um dos mitos fundadores da fé ocidental. Num momento de agigantamento de instituições religiosas que se apoderam da fé alheia com discursos fascistas e com um intuito único de ampliar as desigualdades sociais e mercadológicas, não jogar luz sobre a questão e ficar ancorado na experiência da infância de Jesus faz com que todas as tramas de autoridade, de assédio, de abuso de poder e suas variações sejam quase que suprimidas. E, por isso, a ironia aterradora prometida, não se realiza na cena, embora tenhamos que destacar o trabalho de atuação empreendido por Rodolfo Lemos. O Grupo Risco de Teatro tem talento e competência para redimensionar Primeiro Milagre e investigar caminhos que possam potencializar a acidez, a crítica e nos afetar com um riso que ultrapasse a fronteira da docilidade.
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foto: Marcos Porto |
FICHA TÉCNICA
Direção: Claudia Sachs
Atuação: Rodolfo Lemos
Sonoplastia: Natália Pereira e Rodolfo Lemos
Figurino: Rafael Orsi de Melo
Iluminação: O grupo
Produção: Grupo Risco de Teatro