terça-feira, 24 de outubro de 2017

Crítica: Evocando os Mortos

Evocando os Mortos - foto Marcos Porto
EVOCANDO OS MORTOS - POÉTICA DA EXPERIÊNCIA: RITUAL E RESISTÊNCIA
por Marco Vasques

Utopia, paixão e resistência”, essa é a fundamentação teórica, ética e poética da Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui Traveiz, uma das mais longevas e sólidas companhias teatrais do Brasil. Nascida em março de 1978, a companhia permaneceu coerente com a revolução poética do teatro. Quarenta anos depois, com mais de 30 espetáculos no repertório, a Tribo de Atuadores permanece atenta e atuante, apostando sempre no teatro de rua como espaço capaz de encampar o triunvirato utopia, paixão e resistência. A cada espetáculo, a companhia se aprofunda na pesquisa estética e propõe novos caminhos, outros atalhos, perspectivas outras para que a obra seja capaz de chegar ao público, pegá-lo por dentro e transformá-lo de alguma maneira e em alguma instância.  

O 5º Festival Nacional de Teatro Toni Cunha fez sua abertura com o espetáculo Caliban – a Tempestade de Augusto Boal. Trabalho de rua que evoca os tempos sombrios aos quais precisamos resistir e que remete aos nascimentos e morredouros da América Latina. Ontem, o Teatro do Sesc recebeu Evocando os Mortos – Poéticas da Experiência. Conceituado de desmontagem pela Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui Traveiz, o acontecimento teatral revela o processo criativo da atriz Tânia Farias,com base em pesquisas para os espetáculos Kassandra In Process; Viúvas: Performance Sobre a Ausência; Hamlet Máquina e A Missão – Lembrança de Uma Revolução. A atriz também revela algo sobre Medeia Vozes.
Evocando os Mortos - foto Marcos Porto

O monólogo tem como pressuposto um diálogo íntimo entre a atuadora e o público. Tânia Farias faz uma espécie de diário compartilhado e começa a revelar a sua trajetória como atriz, as suas referências teóricas, a sua condição de mulher em um mundo perfidamente machista, o modo de operação da Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui Traveiz, os conceitos éticos do coletivo, as dificuldades pelas quais o grupo passou para conquistar seu território. Evocando os Mortos – Poéticas da Experiência trata da nossa existência coletiva e do acontecimento da arte na vida. É norteado pela partilha do sensível e do conhecimento. Insinua-se como um ritual que tenta unir o postulado estético e político de Bertolt Brecht com a busca medular de Artaud.

À medida que a conversa acontece, somos chamados a fazer parte do ritual proposto por Tânia Farias. Somos acariciados por seus gestos, sua voz e suas histórias, que deixam de ser a história de uma atriz e da sua busca poética para se tornar a nossa história, a nossa luta. O que temos aqui é o atual, o contemporâneo explicando a ideia de acontecimento. Não apenas como fato singular, sentido único ou novo, mas como força e pensamento da diferença, como exposição do horizonte que mostra as impurezas e purezas do sentir, que mostra as experiências insólitas, que perturbam porque ambivalentes e excessivas, mas que também revolucionam porque estão calcadas no poético.

Dessa forma, o acontecimento reverbera, amplia-se, coagula-se em teatralidade, muito por causa da experiência de Tânia Farias. O conceito de acontecimento também pode ser pensado,segundo estudos de Erika Fischer-Lichte e David Davies, como defesa de uma arte que é uma ação em curso. Uma arte que abdique das categorias tradicionais de análise, a saber: a hermenêutica, a semiótica e a crítica estética vinculada à poiesis. Ao crítico, no modelo sugerido, cabe a experiência da ação em curso e o abandono das certezas teóricas. Só é possível olhar, ler e viver Evocando os Mortos considerando esse abandono teórico, porque a dimensão humana viva abdica de teoria. A dimensão humana é toda sensória, corpo que é todo tato, alma que é toda poesia vivida, muitas vezes poesia arduamente saqueada, rompida, usurpada. Por isso é preciso evocar, trazer e buscar nossos mortos e estampá-los cruelmente na vida. Evocando os Mortos – Poéticas da Experiência se faz ritual, resistência, manifesto criativo e destino de liberdade. Tânia Farias é acontecimento que nos acontece.

Para além de revelar os modos com os quais compõem suas atuações e os conceitos que atravessam a sua pesquisa e da Trupe, Tânia Farias conversa com o espectador, acaricia o público e convoca-nos a partilhar, a comungar o teatro, a vida, as nossas alegrias e tristezas. Não seria exagero dizer que ela emancipa o espectador, tratando-o como parte sensível da sua experiência, tal qual propõe Jacques Rancière nos livros O Espectador Emancipado e Partilha do Sensível.  

Ficha Técnica:
Criação: Tânia Farias, com base em quatro personagens de espetáculos da Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui Traveiz
Concepção e Atuação: Tânia Farias
Produção: Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui Traveiz
Operação de luz: Tribo de Atuadores Ói Nóis Aqui Traveiz

Evocando os Mortos - foto Marcos Porto

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